Pág. 25 Despercebimento (comentado)

Comentário
Professora de Literatura Maria Granzoto da Silva
Arapongas - Paraná


Despercebimento
(José Antonio Jacob)


Dentro dos seus sapatos desbotados
Ele saiu de casa e foi distante,
E foi além da conta, andou bastante,
Até achar caminhos nunca achados.

Esse homem, descontente e itinerante,
Não disse adeus quando se foi aos lados,
Deixou atrás de si rostos molhados
E colocou a Sorte vida adiante.

Depois voltou trazendo na memória
O que o Mundo não lhe pode servir.
E ao retornar ao lar: - Ó Sorte inglória!

Nenhum sorriso amado viu sorrir...
Chamou, cantou, chorou, contou história,
Mas ninguém quis saber e nem ouvir.





Introdução

Não consigo ler uma composição de José Antonio Jacob sem, no mínimo, um mês de antecedência e sem um dicionário ou uns dicionários ao lado para tentar encharcar-me das percepções latentes! Sem falar da métrica e rimas perfeitas, mas o que mais me estonteia é o seu vocabulário! É um campo traçado de modo tão perfeito que, se não nos cuidarmos, entenderemos a mensagem de forma diversa daquela pretendida! Ah! Essa língua portuguesa “inculta e bela”! Ah! Esse banho de cultura que nos dá em cada verso! Ah! Esse poeta mineiro de Juiz de Fora!

O título

“Despercebimento”! Sabemos que é um substantivo. Mas é daí? Que outras implicações? Por que não desapercebimento? Os dois vocábulos são antônimos de outros já existentes, formados pelo habitual acréscimo do prefixo "des-"; não podemos buscar suas diferenças, portanto, sem que se volte ao estágio primitivo dessas palavras, isto é, aos verbos perceber e aperceber. Perceber é velho conhecido nosso, e integra o vocabulário do cotidiano de qualquer brasileiro. Ao lado do significado comum de "notar, dar-se conta, compreender, entender" ("agora percebo o engodo"; "ele percebeu as intenções do rival"; "não percebo o que ela comenta"), indica também "receber, auferir" (ordenados, rendas, lucros, vantagens). Já não tão conhecido é aperceber; de uso muito raro no Português moderno. Significa "aparelhar, preparar; abastecer, fornecer; acautelar-se". Morais (edição de 1813) menciona "apercebido de armas, munições, gente" (provido); "os portugueses, sempre apercebidos, vigiando-se dos mouros" (acautelados). Registra também o significado de "dispor-se de modo conveniente para fazer ou sofrer alguma coisa: apercebeu-se para a morte". Muito adequadamente, apercebimento significava tanto "preparativos" quanto "munições de boca e guerra". As cartas de apercebimento eram avisos que os reis faziam aos senhores para se aprestarem com suas gentes e armas de guerra.

Desapercebido é o que não está apercebido, isto é, não está preparado, não está prevenido, não está aparelhado ou provido, nem acautelado. Despercebido, por outro lado, significa aquilo que não se percebeu, que não se sentiu, viu ou ouviu: "o gesto não passou despercebido dos que assistiam à briga”; Eça. Machado de Assis e Euclides da Cunha usavam o termo com muita propriedade, a exemplo de José Antonio Jacob, neste belíssimo e envolvente soneto.

Faço sempre questão de mencionar o título, auscultá-lo até, porque o mesmo dirá sempre o muito do que há de vir!

De que “Despercebimento” fala o autor? Creio que do leitor, pois o soneto é muito preciso na abordagem das palavras que o compõe.

O primeiro quarteto

Dentro dos seus sapatos desbotados
Ele saiu de casa e foi distante,
E foi além da conta, andou bastante,
Até achar caminhos nunca achados.

E lá vem mais cultura! Os primeiros "sapatos" eram feitos com pedaços de casca de árvores e pedaços de pele amarrados para proteger a sola dos pés. Os egípcios fabricavam sandálias com folhas de palmeiras e de papirus. Os gregos e romanos utilizavam umas sandálias parecidas, mas feitas com tecido, madeira ou couro, amarradas com longas tiras de couro, os primeiros cadarços.

Como sempre na história da humanidade, damos um jeito para fazer diferenciações sociais entre as pessoas, e o sapato era, e é até hoje, um bom meio para saber de que classe social a pessoa pertence. Para os romanos, o estilo do sapato era muito importante para se posicionar socialmente. Durante a idade média os sapatos eram bicudos, mas bicudos mesmo. As extravagâncias eram tantas que certos modelos precisavam ter a ponta amarrada com umas correntinhas no joelho. A moda foi ficando tão estranha que precisou ser regulamentada por lei. Foi publicado um decreto dando o direito aos plebeus de usarem sapatos com pontas de até 15 cm de comprimento, e para os nobres, pontas de até 60 cm!
A evolução seguinte (século XVI) privilegiou a praticidade e a moda voltou-se para os tamancos de madeira que ajudavam a caminhar pelas ruas e caminhos cheios de lama. No século seguinte, apareceram os sapatos decorados com flores, rendas, bordados, salto mais fino para as mulheres. Os homens utilizavam botas que subiam até as coxas, mas sempre de salto. No final do século, a moda era de sapatos baixos, de salto vermelhos, bicos quadrados e enormes laçarotes e borboletas que aos poucos foram substituídos por grandes fivelas.

Os sapatos começaram como uma simples proteção e foram, aos poucos, se tornando objetos que "embrulham" os pés. E eles dizem muito da nossa vida! Daí a importância da pesquisa sobre o assunto e só então perscrutar as variantes da mensagem contida no soneto.

E por que um sapato desbota? Pela demasiada exposições ao sol que causa um efeito reativo e as cores podem migrar ou desbotar. Os sapatos desbotados podem significar que o indivíduo é um andarilho e possui um único par de sapatos ou é um descuidado com seus objetos pessoais. É evidente que a primeira opção é a mais próxima. “Ele saiu de casa e foi distante,/E foi além da conta, andou bastante,/Até achar caminhos nunca achados.” E quanto significa esse “distante”? Depende do conhecimento de mundo de cada pessoa. A distância poderá ser uma antítese e estar mais próxima do que imaginamos! Vejam que ele foi “além da conta, andou bastante” O que é “além da conta”? O que significa andar “bastante”? Ir além significa transcender, passar de um limite. É ignorar os confins. Além do espaço temporal, como na visão de Nietzsche, em que o homem necessitava de um sentido na vida para viver. Ele reavaliou os valores segundo o qual o homem deveria ver o sentido da vida na própria vida. Isso significa que a transcendência para o sentido da vida volta-se para o interior do próprio ser humano e não para algo supra-sensível. Certamente à procura de algo que lhe faltava e de alta relevância em sua vida! De tanto andar descobriu “caminhos” nunca encontrados e percorridos! São os atalhos, as veredas, os oásis, as encruzilhadas que percorremos ao longo da existência, em busca de alguma coisa que poderá transformar a nossa vida, aquela vida sonhada, mas nunca vivida.

O segundo quarteto

Esse homem, descontente e itinerante,
Não disse adeus quando se foi aos lados,
Deixou atrás de si rostos molhados
E colocou a Sorte vida adiante.

Aqui os versos ratificam as idéias subentendidas no primeiro quarteto: “homem descontente e itinerante”que, ao decidir pela partida, nem mesmo se despediu das pessoas com quem convivia, levando-as às lágrimas. Partiu, simplesmente. Foi em busca do que lhe faltava, confiando na sorte, aqui personificada por letra maiúscula. Mas o que é a Sorte? Esta do soneto é a sorte filosófica, que pode ser definida de uma maneira um pouco mais romântica:a sorte é o encontro da imaginação com a realidade.

Poderíamos pensar como os cientistas, que a imaginação não passa de uma fantasia, simplesmente não existe. Mas para adquirir este tipo de sorte, temos que ter um pensar mais abrangente, como os filósofos. Para um filósofo a imaginação naturalmente existe. Tudo o que pensamos com certeza existe, pois se não existisse, como poderia ser pensado? Tentemos agora pensar em algo que não existe. Quem conseguirá? Claro que ninguém. Se pensarmos em um dragão de quatro cabeças, este personagem veio de algum lugar. É exatamente isso, de um lugar que até hoje é completamente desconhecido pelos cientistas, mas um velho conhecido dos filósofos. É o mundo das idéias de Platão, o mundo dos números de Pitágoras, o mundo dos deuses gregos, cheio de luz e energia.. E é através dele que se chega muito mais facilmente ao conhecimento científico, ou seja, sendo filósofos, podemos ser cientistas, sendo apenas cientistas, jamais seremos filósofos e por isso não teremos o conhecimento da verdade universal.

A Filosofia é um dom, não pode ser adquirida em um banco de escola. Ao ter o dom da Filosofia, o homem pode ser o melhor cientista do mundo. Um exemplo disso foi um filósofo que se tornou cientista: Albert Einstein.

O primeiro terceto

Depois voltou trazendo na memória
O que o Mundo não lhe pode servir.
E ao retornar ao lar: - Ó Sorte inglória!


Tudo o que sonhou e desejou ficou no mundo das idéias. Não foi concretizado. Não se tornou a realidade sonhada e buscada! A Sorte vã e a peregrinação frustrada. O objetivo não atingido. Felizmente a vida não é feita apenas de perdas e as nossas vitórias, principalmente aquelas batalhadas, mas também, e porque não, aquelas fruto do acaso e da sorte, trabalham a favor da nossa autoestima. Só que as vitórias são só felicidade, ou alguém tem dificuldade em aceitar uma vitória? Difícil e dolorido é aceitar a derrota!

O último terceto

Nenhum sorriso amado viu sorrir...
Chamou, cantou, chorou, contou história,
Mas ninguém quis saber e nem ouvir.


Voltando à realidade que abandonara em busca de uma felicidade completa, foi ignorado por aqueles aos quais nem disse adeus quando partiu. Por mais que buscasse recursos reais para fazer-se notar e demonstrar que ainda existia, que estava vivo. Mas todos o ignoraram. Foi um completo “Despercebimento”!
Conclusão

É importante analisarmos o vocabulário utilizado pelo autor, visto que ele traz em seu bojo, toda a mensagem do soneto. De início abordei a questão do prefixo -des, que aparece no título e nas palavras “desbotado” e “descontente”. Esse prefixo de origem latina indica sempre separação, negação. Interessante notar o uso dos advérbios de negação, pronomes indefinidos, a palavra “adeus” ( uma palavra tão pequenina pode ter tanto significado, pode ser tão cruel e definitiva). Para Umberto Eco “o discurso aberto tem como primeiro significado a própria estrutura. Assim, a mensagem não se consuma jamais, permanece sempre como fonte de informações possíveis e responde de modo diverso a diversos tipos de sensibilidade e de cultura. O discurso aberto é um apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio e um estímulo para o gosto, para a imaginação, para a inteligência” de cada leitor.
Aristóteles, o pai da teoria da teoria da arte e, metonimicamente, pai da teoria da literatura, trata de algumas figuras. Tradicionalmente, há um repertório infindo de figuras de linguagem, com nomenclaturas diversas, heterogêneas e, até, contraditórias. A própria ambigüidade da classificação das figuras revela a natureza conotativa de todo discurso: a denotação seria, então, uma utopia, na medida em que o poeta, por exemplo, almeja que a palavra seja a coisa, o ícone seja o real, o signo seja o ser. Para além da polissemia de todo enunciado, as figuras também se misturam, configurando um concerto significativo.

Na literatura – arte da palavra, ou, como conceitua Roland Barthes, arte da linguagem –, as figuras ocupam um lugar privilegiado de estudo, de mediação e de meditação. A categoria semântica fundamental se apresenta nas palavras para o escritor e para o leitor.

Na minha leitura de mundo, de fatos, pessoas, sentimentos e uma infindável gama de enfoques, não é possível ler as produções de José Antonio Jacob sem engalfinhar-se nos emaranhados da Língua Portuguesa, da Sociologia, Psicologia, História e outras tantas ciências.

Mas, para o bem e para o mal, a realidade é mais parecida com a parábola do Rei Persa, que pede ao artista do reino uma obra de arte que o ajude a ficar feliz quando está triste e triste quando está feliz, e este lhe presenteia com um anel com os dizeres: "Tudo acaba". Mais rapidamente àquele que falta preparo para enfrentar os desafios da vida. Vive em “Despercebimento”! Quanto mais rápido aceitamos a perda, mais rápido podemos começar de novo. Essa é a beleza da vida.

Maria Granzoto da Silva






POESIA DE BOLSO
ÍNDICE


Sonetos

7/ Desenho (Comentado)
8/ Sonho de Papel (Comentado)
9/ Florzinha (Comentado)
10/ Impulsão (Comentado)
11/ Bolhas de Sabão (Comentado)
12/ Fim de Jornada (Comentado)
13/ Amor -Próprio Ferido
14/ A Dança dos Pares Perdidos
15/ Afronta Impiedosa (Comentado)
16/ Almas Primaverais
17/ Casinha de Boneca
18/ Nós Somos Para Sempre
19/ Sonhando (Comentado)
20/ Faltas e Demoras
21/ Velho Órfão
22/ Silêncio em Casa
23/ Quanto Tempo nos Resta? (Comentado)
24/ Enigma
25/ Despercebimento
26/ Porta-retratos
27/ Roseiras Dolorosas
28/ Sonho Quebrado
29/ O Espelho
30/ O Palhaço (Comentado)
31/ Varal de Luzes
32/ História sem Final
33/ O Beijo de Jesus (Comentado)
34/ Musa do Ano Novo
35/ Natal dos meus Sonhos (Comentado)
36/ O Ano Bom do Bom Fantasma
37/ Domingo em Casa
38/39/ Elogio à dor do Desamor I e II
40/ Almas sem Flores
41/ Crença
42/ Além da Porta
43/ Alminha
44/ Carretéis
45/ Os Afogados
46/ Jardim sem Flores (Comentado)
47/ Mudança
48/ O Vira-lata (Comentado)
49/ Revelação
50/ O Vendedor de Bonequinhos
51/ Repouso no Sítio (Comentado)
52/ Tédio
53/ Crepúsculo de uma Árvore
54/ Noite Fria
55/ Oração do Descrente
56/ Não Despertes Sonhos Nos Meus Dias
57/ Falsidade
58/ Renascer
59/ Poodle
60/ Prisioneiro
61/ A Mãe e a Roseira
62/ A Saudade Sempre Pede Mais
63/ Sublimação (Comentado)
64/ Solidão (Comentado)
65/ Esperança Morta
66/ A Aurora da Velhice
67/ Mãos nos Bolsos
68/ Figurinhas
69/ História Boa
70/ Soneto para o Poeta Triste
71/ Minha Senhora
72/ Soneto de Natal
73/ O Pai e a Terra
74/ Minha Mãezinha
75/ Brinquedo
76/ Alegoria
77/ Almas Raras
78/ Angústia
79/ As Formigas
80/ Velhice Feliz
81/ Na Poltrona
82/ Oração do Dia dos Pais
83/ Ócio e Solidão
84/ A Prece do Capuchinho
85/ Último Delírio
86/ Canção do Rio
87/ O Verso Único
88/ Páscoa
89/ De Volta aos Quintais
90/ Amada Sombra que Persigo
91/ Eu Creio Sim!
92/ Coelhinho da Páscoa
93 Restou uma Poesia
94/ Meu Presépio

Quadra
95/ Veritas (Comentado)

Sextilhas
96/ Delírios de Maio (Comentado)
100/101/ Passeio na Cidade
102/ Natal na Rua da Miséria (Comentado)
104/105/ Uma Temporada na Roça
106/ O Fantasma que mora em meu Sofá
108/ Filhos de Minas


ESPECIAIS JOSÉ ANTONIO JACOB

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(Magnífica declamação do artista português José Bento)

O Sono de Pensar
(Poema em versos livres)

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Homenagem da poetisa Tere Penhabe
(Acróstico Poético)
(Apresentação de Maria Granzoto da Silva)

Resposta ao Passado
(Especial ArtCulturalBrasil)

Mémória de Bibelô
(especial ArtCulturalBrasil)

Além da Porta
(Vídeo de Dorival Campanelle)

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2 comentários:

  1. Anônimo22:13

    Aqui tenho aprendido muito. Só não o tenho mais porque minhas limitações me impedem de entender tudo. Não sei dizer de onde vem tanta cultura e nem quem a tem mais, se o Poeta Jacob ou a analista Maria Granzoto. O fato é que estou num ninho de sabedoria e que minha humilde coletânea de saber mui me apraz poder passar por aqui.

    Adílio dos Santos Lá d´Visconde
    http://www.recantodasletras.com.br/autores/adiliodossantos

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  2. Caro poeta e escritor Adílio do Santos Lá d'Visconde: agradeço suas palavras de incentivo para meus pequenos versos, categoricamente enriquecidos da análise de conhecimentos da professora Maria Granzoto da Silva.
    Com minha especial gratidão,
    José Antônio Jacob

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