Pág. 48 - O vira-lata (comentado)





Comentário
Professora de Literatura Maria Granzoto da Silva
Arapongas - Paraná





O VIRA-LATA
(José Antonio Jacob)


Ele aparece sempre de repente
Na estreita ruazinha ensolarada,
Vai esmiuçando o chão á sua frente,
De vez em quando volta e fita o nada.

E logo segue adiante novamente
Em gesticulação mais animada,
Quando numa caçamba ele pressente
Ter encontrado um mimo na calçada.

Então vira o latão enferrujado
E, ali, remexe um sujo guardanapo
Que alguém deixou com resto de comida.

Depois, vai removendo, com cuidado,
Pedaço por pedaço, fiapo a fiapo,
De uma migalha que sobrou da vida.

Este belo e comovente soneto de José Antonio Jacob intitulado “ O Vira-Lata ” é um poço de reflexões sobre o Homem, a Existência e o Destino! Lembro-me que Rita Bello (site Alma de Poeta) passou noites e noites em busca de uma formatação adequada ao tema e que, eu, na minha ignorância na arte da formatação, propus-me em ajudá-la. Pobre pretensão: virei o próprio vira-lata!

O TÍTULO

Iniciemos pelo título: um nome composto – privilégio da nobreza! Vira-lata especial, pois é definido pelo artigo. Somado a um verbo incoativo (verbo que implica uma transição, ou seja, uma mudança de estado ou característica; em outras palavras, qualquer verbo que possa ser substituído por uma expressão formada pelo verbo virar ou tornar-se). E vem o hífen, sinal diacrítico usado para ligar os elementos de palavras compostas, como é o caso. Em seguida, a lata, um substantivo que, a minha imaginação teima em associar ao “latir”.

O termo vira-lata deriva do fato de muitos desses animais, quando abandonados, serem comumente vistos andando famintos pelas ruas revirando latas de lixo em busca de algum alimento. O vira-lata é definido pela Veterinária pela sigla SRD ( sem raça definida ).

O SONETO

“Ele aparece sempre de repente
Na estreita ruazinha ensolarada,
Vai esmiuçando o chão à sua frente,
De vez em quando volta e fita o nada.

”Um vira-lata sempre parece saber para onde vai, com seu passo decidido. E, se parado, aparenta a solidez de quem está no devido lugar, na hora certa. Os humanos, por mais que saibam para onde ir, sempre têm esse ar um tanto patético dos perdidos no mundo. Parados, mal sabem onde pôr as mãos. Talvez, por isso, inventaram os bolsos... ”Vai esmiuçando o chão...” esmiuçar, que é uma palavra que gosto; quem já esmiuçou, por exemplo, um formigueiro? Esmiuçar o chão deve levar-nos a grandes descobertas! É uma coisa que gosto de fazer quando não me apetece fazer mais nada. E “fitar o nada” é maravilhoso! Desprende-se de tudo e de todos! E quando é mais nada é mesmo mais nada. O conceito de nada se refere à inexistência de qualquer coisa. No nada não existe nem o espaço, isto é, não há coisa alguma e nem um lugar vazio para caber algo. O conceito de nada inclui também a inexistência das leis físicas que alguma coisa existente obedeceria, dentre elas a conservação da energia, o aumento da entropia e a própria passagem do tempo. Sendo o espaço o conjunto dos lugares, isto é, das possibilidades de localização, sua inexistência implica na impossibilidade de conter qualquer coisa. Isto é, não se pode estar no nada. O nada é, pois, um não-lugar. Da mesma forma, sendo o tempo algo que decorre do movimento daquilo que existe, no nada não há decurso de tempo.

De acordo com o modelo padrão da Cosmologia (o Big Bang), o Universo surgiu de uma singularidade primordial que, no instante zero, iniciou sua expansão, gerando tudo o que existe, inclusive o tempo e o espaço. Nesta singularidade estava todo o conteúdo de matéria-energia que existe. A Cosmologia Física não faz referência ao que poderia haver antes que essa singularidade iniciasse sua expansão nem sobre sua origem. Uma das possibilidades é a de que, antes, não houvesse coisa alguma, nem vácuo, nem energia, nem leis físicas, nem espaço vazio para se ter alguma coisa e nem mesmo decurso de tempo. Seria, pois, o nada.

Por definição, quando se fala de existência, se fala da existência de algo. O nada não é coisa alguma, logo não existe. O nada é um signo, uma representação linguística do que se pensa ser a ausência de tudo. O que existe são representações mentais do nada. Como uma definição ou um conceito é uma afirmação sobre o que uma coisa é, o nada não é positivamente definido, mas apenas representado, fazendo-se a relação entre seu símbolo (a palavra "nada") e a idéia que se tem da não-existência de coisa alguma. O "nada" não existe, mas é concebido por operações de mente. Esta é a concepção de Bergson, oposta à de Hegel, modernamente reabilitada por Heidegger e Sartre, de que o nada seria uma entidade de existência real, em oposição ao ser.

Matematicamente o conceito de nada é equivalente ao de "conjunto vazio", que é o conjunto que não possui elementos, mas é um elemento do conjunto dos subconjuntos de um conjunto. Assim o "nada" seria um dos elementos do "tudo", ou do Universo. Esta concepção, aplicada à física, todavia, não possui base fenomenológica sustentável.

“E logo segue adiante novamente
Em gesticulação mais animada,
Quando numa caçamba ele pressente
Ter encontrado um mimo na calçada.”

E o SRD fita o nada, ainda que não saiba nada. Os homens é que precisam definir tudo. E, assim, os cães de raça, com suas designações pomposas e pedigrees, podem ser escolhidos por seus donos, criteriosamente. O vira-lata, por sua vez, prefere e sabe fazer escolhas ele mesmo. Sem árvore genealógica, atravessa a rua sozinho e consegue comida com sua humilde auto-suficiência: é o “mimo na calçada”... As agruras da sarna, dos atropelamentos e das pedradas é que dão fibra à sua alma.

“Então vira o latão enferrujado
E, ali, remexe um sujo guardanapo
Que alguém deixou com resto de comida.”

O cão vira-lata lembra-me a sombra do homem faminto, que vive virando a lata imunda do mundo. Manuel Bandeira viu certa vez um homem fuçando uma lata de lixo num pátio. Com esse material mínimo escreveu uma poesia (O bicho), muito admirada também num determinado setor das universidades de Roma e de Pisa. Roma! Os palácios vermelhos de Roma! Pisa! A lâmpada de Galileu! As romanas! As pisanas! O Vira-Lata “vira o latão enferrujado...” Pois é! Em Roma, a lata de lixo, outrora sórdido caixote (salvo para os vira-latas), transformou-se hoje num elegante objeto de plástico, em geral azul, perfeita esfera. Não é fácil ver-se o lixeiro e nem vira-latas. O lixeiro é um personagem kafkiano, quase marciano. Deixa-se a lata do lado de fora, e ele, pisando com pés de lã, invisível aos olhos mortais, discreto, obediente, esvazia a esfera azul. E usa luvas! Igualzinho num País chamado Brasil!

“Depois, vai removendo, com cuidado,
Pedaço por pedaço, fiapo a fiapo,
De uma migalha que sobrou da vida."

CONCLUSÃO

Reparem naqueles que nunca tiveram um vira-lata. Parece que lhes falta algo. O sorriso, talvez, tenha menos de rabo abanando em seus componentes e mais de tédio e fleuma, ou coisa assim. O vira-lata ensina a ser feliz com pouco. Mesmo quem não tem nada pode ter um cão, desde que ele deixe. O bêbado e o louco conversam com um vira-lata de igual para igual. Ao menos esses conseguem se alçar à altura do cão. E este lhes lambe as mãos.Veja a procissão de cães atrás de uma única cadela. Dinastias inteiras de vira-latas foram fecundadas e fundadas em madrugadas quando até o amor, esse item em extinção, era dividido. Vira-latas há aos montes por aí. E não tem um que seja igual ao outro. Parecidos, às vezes. Em sua miscelânea genética, ele é antes de tudo um forte. Nunca precisou de vacina pra sobreviver.

Quando perguntam por aí: se você fosse um bicho qual seria? Todos respondem coisas como águia, leão ou tigre. Eu demorei pra descobrir, mas hoje eu respondo de boca-cheia.

Se eu fosse um bicho, eu seria um vira-lata. Desses amarelos, haja vista a cor dos meus cabelos!

Mais um envolvente soneto de Jacob, aparentemente tão simples, mas carregado de cultura, de sabedoria! Basta ser um vira-lata para comprovar!

Maria Granzoto da Silva


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Poesia de Bolso - Ed. ArtCulturalBrasil/2011

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 BIBLIOGRAFIA

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
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CRESSOT, Marcel. O estilo e as suas técnicas. Edições 70, 1980.
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COSTA, Lígia Maura da, e REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia - Estrutura e história. Ática, 1988.
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JAPPE, Anselm. O mercado absurdo dos homens sem qualidade. In: Os últimos combates. 4 ed. Brasil: Vozes, 1998.
MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. Ática.
BRAIT, Beth. A personagem. Ática, 1998.
GOLDBERG, Natalie. Mente selvagem. Como se tornar um escritor. Gryphus, 1994.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Martins Fontes, 1993.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Vozes, 1987.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Cultrix.
PERISSÉ, Gabriel. Ler, pensar e escrever. Arte & Ciência, 1998.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. Ática, 1999.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Ática, 1995.
LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. Martins Fontes, 1991.
MARTINS, Nilce Sant'Anna. Introdução à estilística. T. A. Queiroz, Editor, 1997.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. Prosa I. Cultrix, 1997.
GARDNER, John. A arte da ficção - orientação para futuros escritores. Civilização Brasileira, 1997.
MOISÉS, Massaud. A análise literária. Cultrix, 1996.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Perspectiva, 1992.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. Ática, 1988.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Perspectiva, 1993.




POESIA DE BOLSO
ÍNDICE


Sonetos

7/ Desenho (Comentado)
8/ Sonho de Papel (Comentado)
9/ Florzinha (Comentado)
10/ Impulsão (Comentado)
11/ Bolhas de Sabão (Comentado)
12/ Fim de Jornada (Comentado)
13/ Amor -Próprio Ferido
14/ A Dança dos Pares Perdidos
15/ Afronta Impiedosa (Comentado)
16/ Almas Primaverais
17/ Casinha de Boneca
18/ Nós Somos Para Sempre
19/ Sonhando (Comentado)
20/ Faltas e Demoras
21/ Velho Órfão
22/ Silêncio em Casa
23/ Quanto Tempo nos Resta? (Comentado)
24/ Enigma
25/ Despercebimento
26/ Porta-retratos
27/ Roseiras Dolorosas
28/ Sonho Quebrado
29/ O Espelho
30/ O Palhaço (Comentado)
31/ Varal de Luzes
32/ História sem Final
33/ O Beijo de Jesus (Comentado)
34/ Musa do Ano Novo
35/ Natal dos meus Sonhos (Comentado)
36/ O Ano Bom do Bom Fantasma
37/ Domingo em Casa
38/39/ Elogio à dor do Desamor I e II
40/ Almas sem Flores
41/ Crença
42/ Além da Porta
43/ Alminha
44/ Carretéis
45/ Os Afogados
46/ Jardim sem Flores (Comentado)
47/ Mudança
48/ O Vira-lata (Comentado)
49/ Revelação
50/ O Vendedor de Bonequinhos
51/ Repouso no Sítio (Comentado)
52/ Tédio
53/ Crepúsculo de uma Árvore
54/ Noite Fria
55/ Oração do Descrente
56/ Não Despertes Sonhos Nos Meus Dias
57/ Falsidade
58/ Renascer
59/ Poodle
60/ Prisioneiro
61/ A Mãe e a Roseira
62/ A Saudade Sempre Pede Mais
63/ Sublimação (Comentado)
64/ Solidão (Comentado)
65/ Esperança Morta
66/ A Aurora da Velhice
67/ Mãos nos Bolsos
68/ Figurinhas
69/ História Boa
70/ Soneto para o Poeta Triste
71/ Minha Senhora
72/ Soneto de Natal
73/ O Pai e a Terra
74/ Minha Mãezinha
75/ Brinquedo
76/ Alegoria
77/ Almas Raras
78/ Angústia
79/ As Formigas
80/ Velhice Feliz
81/ Na Poltrona
82/ Oração do Dia dos Pais
83/ Ócio e Solidão
84/ A Prece do Capuchinho
85/ Último Delírio
86/ Canção do Rio
87/ O Verso Único
88/ Páscoa
89/ De Volta aos Quintais
90/ Amada Sombra que Persigo
91/ Eu Creio Sim!
92/ Coelhinho da Páscoa
93 Restou uma Poesia
94/ Meu Presépio

Quadra
95/ Veritas (Comentado)

Sextilhas
96/ Delírios de Maio (Comentado)
100/101/ Passeio na Cidade
102/ Natal na Rua da Miséria (Comentado)
104/105/ Uma Temporada na Roça
106/ O Fantasma que mora em meu Sofá
108/ Filhos de Minas





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