Pág. 19 Sonhando... (comentado)

Comentário
Professora de Literatura Maria Granzoto da Silva
Arapongas - Paraná
granzoto@globo.com


Sonhando...
(José Antonio Jacob)

Para viver à luz dos devaneios,
Neste pequeno teatro do colchão,
Deixo um vazio nos meus olhos cheios
Da tua ausência em minha solidão.

Dispo-te as flores que te ornam os seios
E os cubro com soluços de paixão
E este meu sonho me permite meios
Para encantar de amor teu coração.

Somos memórias curtas deste agora,
Pois que nosso futuro é o outro dia
Que morre de repente em plena aurora.

Sonho em teus olhos de deserto e pó...
Por isso durmo e acordo na utopia
Que somos duas vidas numa só.

POESIA DE BOLSO PÁG. 19
Introdução

Somos deveras privilegiados ao receber mais um belo poema do poeta José Antonio Jacob, esse filho de Minas Gerais que traz o ouro poético das veias para o engrandecimento da nossa literatura. Durante esses poucos anos de convívio espiritual, posso afirmar que aprendi muito mais que em cem anos, se até lá pudesse viver. Obrigada, poeta dileto! Sonhando tornamos a passagem menos dolorida, creio!

O título

O poeta usa o gerúndio para intitular seu poema, o que indica uma ação em andamento, um ato ou um fato ainda não finalizado, quando o caráter durativo da ação está claro. E seguido pelas reticências, reforça a idéia da perenidade do sonhar. Gramatical e estilisticamente correto, dá a idéia de progressão, movimento, continuidade. O que seria da humanidade se não lhe fosse permitido sonhar? Daí o sugerir certo prolongamento da idéia: movimento ou a continuação de um fato. E assim, vamos sonhando...

O primeiro quarteto

Para viver à luz dos devaneios,
Neste pequeno teatro do colchão,
Deixo um vazio nos meus olhos cheios
Da tua ausência em minha solidão.

Metáforas, antíteses, comparações... Riqueza no emprego das figuras... Um sonhar cheio de vazios... Seria o vazio um meio de transporte para quem tem um coração transbordante que circula no infinito? E é num colchão que se junta tudo numa coisa só... Que reflexão pode-se fazer sobre o papel do sujeito criativo, para levantar alguns pontos que nos rodeiam no cotidiano das ações de criar? Sabemos que o princípio criativo dá-se pelo estado de puro caos onde o devaneio se presencia como fonte de inspiração, num pleno estado de desordem das idéias, o que é necessariamente bom, útil, eterno, infinito, um passo para atingir a loucura de chegar ao inatingível... "Um vazio nos meus olhos cheios da tua ausência..." nos explica que quando "desbloqueamos" nossos olhos diante da visão que temos do outro, conseguimos entender que o amor verdadeiro é interno, entranhado em nossas vísceras, na nossa essência. Ele surge de dentro para fora, dessa solidão, como o nosso desejo de aprender, porque dentro de nós o vazio não é oco, mas cheio de vontade de descobrir o que já está dentro de si e que não se mostra,aparenta que vai se revelar, mas novamente se esconde. Quando experimentamos sugar este leite materno, que faz do amor este ato bonito de dentro para fora, ele, finalmente, é sentido e não somente visualizado, pois se concretiza e se transforma "em amor que veio".

O segundo quarteto

Dispo-te as flores que te ornam os seios
E os cubro com soluços de paixão
E este meu sonho me permite meios
Para encantar de amor teu coração.

Este desejo eterno de ampliar horizontes, redimensionar imagens, reinventar as coisas e propor novas formas e imagens, tem sua objetividade de vivenciar no plano experimental, da realidade pela a qual nos comprometemos como arteiros das idéias novas.Tenho o mau ( ou o bom ) hábito de pensar demais. Mas percebi que pensar demais é o caminho inverso para atingir a paz de espírito, coisa que eu tenho sentido necessidade. Esses versos me reportam à música  “Maluco Beleza: Enquanto você / Se esforça pra ser / Um sujeito normal / E fazer tudo igual…”, o poeta diz: “Dispo-te as flores que te ornam os seios / E os cubro com soluços de paixão,”... E lembra o imortal Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança; do mal ficam as mágoas na lembrança, e do bem (se algum houve), as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, (o colchão,) que já coberto foi de neve fria, e, enfim, converte em choro o doce canto. E, afora este transmutar-se a cada dia, outra mudança faz de mor espanto, que não se muda já como soía. (Luís de Camões). Por que... maneiras de produzir encantos, o meu sonho permite!

O primeiro terceto

Somos memórias curtas deste agora,
Pois que nosso futuro é o outro dia
Que morre de repente em plena aurora.

Experimentemos abrir uma semente ao meio e veja se lá existe algum mecanismo que faça outra planta nascer. Lá é vazio de coisas que nossos olhos não conseguem ver e talvez cheio de algo que ainda não conseguimos enxergar no vazio de nós mesmos. Se não esperarmos por alguma coisa, cairemos no vazio mais interno; se não acreditarmos que alguma coisa aconteça, teremos que encarar o vácuo dentro de nós, o nada. E isso dá medo, isso é como a morte. Para evitar isso, para escapar disso, a pessoa projeta um sonho no futuro. É assim que o tempo futuro é criado.

O futuro não é parte do tempo, ele é parte da mente. O tempo é sempre presente. Ele nunca é passado e nunca é futuro. Ele é sempre agora. A mente cria o futuro, assim a pessoa pode evitar o 'agora', a pessoa pode olhar para frente, para as nuvens, esperar alguma coisa e imaginar que alguma coisa está para acontecer e nada acontece. Por quê? Porque morre “em plena aurora”...?

O último terceto

Sonho em teus olhos de deserto e pó...
Por isso durmo e acordo na utopia
Que somos duas vidas numa só.

Uma das verdades mais básicas a respeito da vida humana é que jamais coisa alguma acontece. Milhões de coisas parecem acontecer, mas nada jamais acontece. A pessoa segue esperando, esperando, esperando: esperando... Uma eterna esperança, a esperança de vir aquele “Amanhã”, que Jacob nos fala no soneto “Crença”.

 “E a noite o recolhia nesse afã
De estar sempre esperando esse Amanhã
E sempre esse Amanhã tardando a vir...”


Ainda assim, a pessoa tem que projetar um sonho... Do contrário, como evitar o seu próprio vazio interior?

É do conhecimento humano que: “O homem é feito de pó e ao pó retornará - do pó para o pó.”

Sonhar é o desejo, a projeção, a ambição, o futuro, a imaginação. De outra maneira, nos tornaríamos conscientes de que somos apenas pó e nada mais. Esperando pelo futuro, aguardando o futuro, o pó tem um sonho ao redor, ele faz parte da glória do sonho, ele ilumina. Através do sonho sentimos que somos alguém. E sonhar não custa nada a nenhuma classe social! Mendigos podem sonhar que são imperadores, não existe lei alguma contra isso. Para evitar o que é, projeta-se um sonho de tornar-se algo. Há corruptos, ladrões, pessoas honestas, fidedignas, amantes, mal amados, e todos personificam toda a humanidade.

Mas para criar um sonho, um não é suficiente, dois são necessários. Porque um será menos do que é preciso, a ajuda do outro é necessária. Só, é muito difícil sonhar. Pouco a pouco o sonho é quebrado e você é atirado à realidade nua, ao vazio. É necessário alguém para se agarrar, alguém para olhar, alguém para compartilhar, alguém que vai remendar os furos, que irá trazê-lo para fora de si mesmo, de maneira que você não tenha que encarar a sua realidade nua. É preciso que alguém o leve ao “pequeno teatro do colchão”, entende?



Conclusão

Amanhã novamente o sol nascerá e estaremos no mesmo lugar e esperando, e de novo sonhando...




POESIA DE BOLSO
ÍNDICE


Sonetos

7/ Desenho (Comentado)
8/ Sonho de Papel (Comentado)
9/ Florzinha (Comentado)
10/ Impulsão (Comentado)
11/ Bolhas de Sabão (Comentado)
12/ Fim de Jornada (Comentado)
13/ Amor -Próprio Ferido
14/ A Dança dos Pares Perdidos
15/ Afronta Impiedosa (Comentado)
16/ Almas Primaverais
17/ Casinha de Boneca
18/ Nós Somos Para Sempre
19/ Sonhando (Comentado)
20/ Faltas e Demoras
21/ Velho Órfão
22/ Silêncio em Casa
23/ Quanto Tempo nos Resta? (Comentado)
24/ Enigma
25/ Despercebimento
26/ Porta-retratos
27/ Roseiras Dolorosas
28/ Sonho Quebrado
29/ O Espelho
30/ O Palhaço (Comentado)
31/ Varal de Luzes
32/ História sem Final
33/ O Beijo de Jesus (Comentado)
34/ Musa do Ano Novo
35/ Natal dos meus Sonhos (Comentado)
36/ O Ano Bom do Bom Fantasma
37/ Domingo em Casa
38/39/ Elogio à dor do Desamor I e II
40/ Almas sem Flores
41/ Crença
42/ Além da Porta
43/ Alminha
44/ Carretéis
45/ Os Afogados
46/ Jardim sem Flores (Comentado)
47/ Mudança
48/ O Vira-lata (Comentado)
49/ Revelação
50/ O Vendedor de Bonequinhos
51/ Repouso no Sítio (Comentado)
52/ Tédio
53/ Crepúsculo de uma Árvore
54/ Noite Fria
55/ Oração do Descrente
56/ Não Despertes Sonhos Nos Meus Dias
57/ Falsidade
58/ Renascer
59/ Poodle
60/ Prisioneiro
61/ A Mãe e a Roseira
62/ A Saudade Sempre Pede Mais
63/ Sublimação (Comentado)
64/ Solidão (Comentado)
65/ Esperança Morta
66/ A Aurora da Velhice
67/ Mãos nos Bolsos
68/ Figurinhas
69/ História Boa
70/ Soneto para o Poeta Triste
71/ Minha Senhora
72/ Soneto de Natal
73/ O Pai e a Terra
74/ Minha Mãezinha
75/ Brinquedo
76/ Alegoria
77/ Almas Raras
78/ Angústia
79/ As Formigas
80/ Velhice Feliz
81/ Na Poltrona
82/ Oração do Dia dos Pais
83/ Ócio e Solidão
84/ A Prece do Capuchinho
85/ Último Delírio
86/ Canção do Rio
87/ O Verso Único
88/ Páscoa
89/ De Volta aos Quintais
90/ Amada Sombra que Persigo
91/ Eu Creio Sim!
92/ Coelhinho da Páscoa
93 Restou uma Poesia
94/ Meu Presépio

Quadra
95/ Veritas (Comentado)

Sextilhas
96/ Delírios de Maio (Comentado)
100/101/ Passeio na Cidade
102/ Natal na Rua da Miséria (Comentado)
104/105/ Uma Temporada na Roça
106/ O Fantasma que mora em meu Sofá
108/ Filhos de Minas


ESPECIAIS JOSÉ ANTONIO JACOB

PPS Clique no seu Poeta
(Magnífica declamação do artista português José Bento)

O Sono de Pensar
(Poema em versos livres)

Site Cenário de Sentimentos

AVSPE José Antonio Jacob
Homenagem da poetisa Tere Penhabe
(Acróstico Poético)
(Apresentação de Maria Granzoto da Silva)

Resposta ao Passado
(Especial ArtCulturalBrasil)

Mémória de Bibelô
(especial ArtCulturalBrasil)

Além da Porta
(Vídeo de Dorival Campanelle)

VISITE



Voltar
ÍNDICE








Um comentário:

  1. "Deixo um vazio nos meus olhos cheios
    Da tua ausência em minha solidão"
    Olhos cheios de ausência é uma das mais belas tiradas poéticas que eu já li.

    Estimado Poeta!

    Para mim, felicidade
    não é glória nem riqueza,
    O que me deixa feliz realmente
    é poder ler tanta beleza!

    Aplaudindo em pé registro aqui meus humildes cumprimentos.
    Parabéns. . .Parabéns. . .Parabéns!
    Que show! Que inveja, ahahahaha....
    Lindo demais.
    Abraços
    Irani Gennaro.

    ResponderExcluir