Pág. 51 - Repouso no Sítio (comentado)



Comentário
Professora de Literatura Maria Granzoto da Silva
Arapongas - Paraná


Repouso no Sítio
(José Antonio Jacob)

Longas horas no sítio de repouso,
Tendo a paz do pomar por companhia,
A passar o meu dia preguiçoso,
Sentindo "não sei quê" de nostalgia.

Não escuto o gemido lamentoso
Da Voz que me persegue noite e dia,
Apenas ouço o pio doloroso
De alguma ave doente em agonia.

E me sinto abatido e descontente,
Se bem que esteja à toa em meu caminho,
Passeando calmamente junto às flores.

Mas tenho medo de seguir em frente:
Será que poderei andar sozinho,
O que será de mim sem meus temores?







Poesia de Bolso - Ed. ArtCulturalBrasil/2011


UMA CIDADE SEM MEMÓRIA CULTURAL É UMA CIDADE SEM FUTURO HISTÓRICO


Introdução

Novamente mergulhamos no mundo mágico da arte poética de José Antonio Jacob. E que magia contém essa arte! É tão envolvente que nos parece absorver deste mundo físico, enovelar-nos e penetrar no mais profundo do ser, diluindo-se pelas veias!

Título

Não gosto muito de explorar classes gramaticais em poemas, mas em alguns casos, há que se fazer. Verbo ou substantivo? Indiferente. A questão reside na semântica. Diminuir a fadiga? Descanso para o corpo e a mente? Recuperação da saúde? Férias? “Liberdade vigiada”?

Primeiro quarteto

Longas horas no sítio de repouso,
Tendo a paz do pomar por companhia,
A passar o meu dia preguiçoso,
Sentindo "não sei quê" de nostalgia.

Pelo que se lê no primeiro quarteto trata-se de um “descanso” forçado porque “no sítio de repouso,” as horas não tem a duração de sessenta minutos. Elas são “longas”. A nasalização aparece quatro vezes, contribuindo para o espichamento das horas. Não é tão difícil identificar os fenômenos que contribuem para o ritmo do poema; perceber a sua cadência, entretanto, é questão também de sensibilidade de leitura, ou de "intuição atualizadora do leitor", nas palavras de Dâmaso Alonso. Para ele, há três modos de compreender a obra literária: o primeiro, o do leitor comum, que não procura analisar nem exteriorizar suas impressões; o segundo, o do crítico, cujas qualidades de leitor são mais desenvolvidas, transmite suas impressões e situa-se ao nível da arte, e o terceiro, o da tentativa de desvendar os mistérios da criação de uma obra e dos efeitos dessa obra sobre os leitores.

Nilce Sant’Anna Martins nos apresenta uma explicação técnica sobre a linha melódica de uma frase a partir das variações de altura do tom laríngeo que incidem sobre uma seqüência de sílabas, uma palavra ou sequência de palavras. Mas é somente na frase, conforme ressalta, que a entoação tem o seu valor próprio (na palavra isolada, o tom se confunde com o acento de intensidade), “que pode ser de ordem intelectual, distinguindo os tipos de frase, ou afetivo, denotando estado emotivo do falante” (MARTINS, 1989: 174).

Assim a nasalização dá um tom melancólico ao sítio (“longas”, “tendo”, “companhia”, “sentindo”).

A aliteração da consoante bilabial, surda e oclusiva “p”, provoca certa semelhança com a “paz do pomar”, mencionada pelo autor. Parece-me uma paz contida... No entanto, a sibilante “s” somada às duas vogais “i” da palavra “sítio” se contrapõem à nostalgia, ao estar longe do burburinho urbano, pois a idéia que nos passa é de algazarra de pássaros. Mas posso pensar também na tal liberdade vigiada, no “estar sitiado”, estar num determinado espaço por algum tipo de imposição. “A passar o meu dia preguiçoso”: preguiça, lentidão; as horas não passam. São contadas, mas são encantadas. Jamais encurtadas! E esse “...não-sei-quê de nostalgia”... É um desejo de volta ao passado? Saudade de outro espaço? Tristeza sem definição da causa?

Segundo quarteto

Não escuto o gemido lamentoso
Da Voz que me persegue noite e dia,
Apenas ouço o pio doloroso
De alguma ave doente em agonia.

Antítese logo de início: se não escuto o gemido da Voz, como adjetivá-lo? Mas ouço o pio da ave e sinto que é doloroso. Este segundo quarteto está enraizado ao som; alíás, a assonância do sufixo “-oso” nos primeiro e terceiro versos ratifica a idéia de estar “cheio de”, enfastiado. Sabemos que o som é uma forma de energia. Assim, a energia aqui transcrita e versejada esta grávida de uma agonia sufocante! É um delírio constante e intermitente desalinhavando os sentidos. A “Voz” converteu-se em substantivo próprio e, por isso, está personificada, mas intocada. Persegue, mas não se deixa ouvir. Contraditórias as idéias. A concepção que é produzida pelo intelecto são vozes mentais - palavras interiores, que não se traduzem em fala, que é a manifestação da voz. A voz é um sinal material sensível da palavra, que permite a sua comunicação com o mundo real.

Primeiro terceto

E me sinto abatido e descontente,
Se bem que esteja à toa em meu caminho,
Passeando calmamente junto às flores.

Caminhar sem destino, sem rumo, a esmo. O desatino definha e rouba-lhe a alegria, embora existam as flores.

Último terceto

Mas tenho medo de seguir em frente:
Será que poderei andar sozinho,
O que será de mim sem meus temores?

Há o medo de prosseguir só. Mas, se passeia “calmamente junto às flores”, por que receia “andar sozinho”? Medo e temores. De quem? Da Voz, de si próprio, da solidão? E se nada disso existisse, o poeta seria capaz de aceitar outro destino? 

Percebe-se neste soneto os indícios daquilo que o sociológo e poeta Gilberto Vaz de Melo comenta no prefácio do Almas Raras: "O seu medo hipocondríaco da doença; sua aversão à desigualdade social e às suas nefastas conseqüências, quando diz em tom claro: “é uma pequena voz que me acompanha", ou mesmo no seu mundo de "visões" das aparições que o incomodam tanto..."

Conclusão

O pensamento e a vida estão mais ligados à linguagem do que em geral supomos. A força viva da palavra não só transmite, mas até mesmo gera e preserva, em interação dinâmica, o que pensamos e sentimos; o que podemos pensar e sentir... Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer. O tempo passa, coisas velhas se vão, coisas novas chegam, elas não vem com manual de instruções, a vida não para, pra que possamos aprender a lidar com elas, temos que aprender durante a caminhada, muitas vezes, com os erros, nos machucando. Acertando ou errando, o importante é aprender, pois isso tudo é apenas uma preparação para os novos desafios que virão... Aceitar o passado e as circunstâncias da vida que não podemos mudar traz enorme alívio e a paz de espírito que procuramos tão intensamente. Cada dia é um novo começo.

Há um poder que nos ajuda a encontrar novos caminhos. Esse poder está sempre conosco. Quando tememos enfrentar uma nova situação ou quando algo acontece de maneira errada ou imprevisível em nossa vida, podemos lançar mão dessa força maior para nos ajudar a dizer o que deve ser dito e fazer o que deve ser feito. Nosso poder superior está tão próximo de nós quanto nossa respiração. É preciso ter consciência que há uma “Voz” que nos fortalece a cada momento. No entanto, nem sempre estamos dispostos a ouvi-La. Vários são os motivos, conforme podemos “ler” neste belo soneto. Daí decorre o fato de precisarmos do repouso em solidão. “Repouso no Sítio” é o retrato da solidão consentida. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas, dias, meses e até anos! É a isso que todos nós precisamos chegar. Sábia e engenhosa composição, a iniciar pelo título. Nele, a palavra “repouso” derrama-se em todas as direções. Em consequência da forma desta a letra o, nela, é mais longa. Li e reli o poema. Com ele acordei e dormi por vários dias. A mensagem que para mim ficou foi a de que precisamos da reflexão em estado de silêncio pleno. Só assim chegaremos à realidade que se esconde atrás da aparência... a ver além dos cinco sentidos. Enxergar com os olhos da alma... A vida materializa nossos pensamentos. Conforme acreditamos, ela se tornará. Se Deus colocou tanta beleza, tanta vida, tanta alegria e perfume em simples flores, o que não terá feito com o Homem?. ELE nos deu sentimento, alegria, bondade e tantas possibilidades de escolha! A dor, o sofrimento, o ódio, a ignorância vem da nossa necessidade de perceber. Deus permite o contraste para que possamos enxergar claro. De que adiantaria acender uma luz na claridade? É nas trevas que ela é percebida. Sem a tristeza, a alegria não seria apreciada, sem a carência, a abundância não teria significado. A dor serve para nos levar aos cuidados da preservação. É um alerta que nos adverte que algo não está bem. Sem ela, não teríamos referência. O soneto lembra-me ainda aquela canção dos Titãs, Epitáfio:” Devia ter amado mais/Ter chorado mais/Ter visto o sol nascer/Devia ter arriscado mais/E até errado mais/Ter feito o que eu queria fazer...” Eu teria falado menos e escutado mais. Eu teria lido e refletido mais sobre os seus poemas, José Antonio Jacob!

Maria Granzoto da Silva

"Para entendermos a linguagem dos inspirados, seria necessário sermos nós mesmos inspirados. Não sendo assim, tudo o que nos dizem de obscuro e inconcebível não passa para nós de palavras sem ideias. É como se nada nos dissessem"

(Rousseau, Jean Jacques)

Bibliografia

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

MARTINS, Nilce Sant’Anna - Introdução a estilística na língua portuguesa. 2 ed. ver. e aum. São Paulo: T. A. Queiroz, 1997.

JAKOBSON, Roman - Lingüística e poética. In.: Lingüística e comunicação. Trad. Isidoro Blinkstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969.

MONTEIRO, José Lemos - A Estilística. São Paulo: Ática, 1991.





POESIA DE BOLSO
ÍNDICE


Sonetos

7/ Desenho (Comentado)
8/ Sonho de Papel (Comentado)
9/ Florzinha (Comentado)
10/ Impulsão (Comentado)
11/ Bolhas de Sabão (Comentado)
12/ Fim de Jornada (Comentado)
13/ Amor -Próprio Ferido
14/ A Dança dos Pares Perdidos
15/ Afronta Impiedosa (Comentado)
16/ Almas Primaverais
17/ Casinha de Boneca
18/ Nós Somos Para Sempre
19/ Sonhando (Comentado)
20/ Faltas e Demoras
21/ Velho Órfão
22/ Silêncio em Casa
23/ Quanto Tempo nos Resta? (Comentado)
24/ Enigma
25/ Despercebimento
26/ Porta-retratos
27/ Roseiras Dolorosas
28/ Sonho Quebrado
29/ O Espelho
30/ O Palhaço (Comentado)
31/ Varal de Luzes
32/ História sem Final
33/ O Beijo de Jesus (Comentado)
34/ Musa do Ano Novo
35/ Natal dos meus Sonhos (Comentado)
36/ O Ano Bom do Bom Fantasma
37/ Domingo em Casa
38/39/ Elogio à dor do Desamor I e II
40/ Almas sem Flores
41/ Crença
42/ Além da Porta
43/ Alminha
44/ Carretéis
45/ Os Afogados
46/ Jardim sem Flores (Comentado)
47/ Mudança
48/ O Vira-lata (Comentado)
49/ Revelação
50/ O Vendedor de Bonequinhos
51/ Repouso no Sítio (Comentado)
52/ Tédio
53/ Crepúsculo de uma Árvore
54/ Noite Fria
55/ Oração do Descrente
56/ Não Despertes Sonhos Nos Meus Dias
57/ Falsidade
58/ Renascer
59/ Poodle
60/ Prisioneiro
61/ A Mãe e a Roseira
62/ A Saudade Sempre Pede Mais
63/ Sublimação (Comentado)
64/ Solidão (Comentado)
65/ Esperança Morta
66/ A Aurora da Velhice
67/ Mãos nos Bolsos
68/ Figurinhas
69/ História Boa
70/ Soneto para o Poeta Triste
71/ Minha Senhora
72/ Soneto de Natal
73/ O Pai e a Terra
74/ Minha Mãezinha
75/ Brinquedo
76/ Alegoria
77/ Almas Raras
78/ Angústia
79/ As Formigas
80/ Velhice Feliz
81/ Na Poltrona
82/ Oração do Dia dos Pais
83/ Ócio e Solidão
84/ A Prece do Capuchinho
85/ Último Delírio
86/ Canção do Rio
87/ O Verso Único
88/ Páscoa
89/ De Volta aos Quintais
90/ Amada Sombra que Persigo
91/ Eu Creio Sim!
92/ Coelhinho da Páscoa
93 Restou uma Poesia
94/ Meu Presépio

Quadra
95/ Veritas (Comentado)

Sextilhas
96/ Delírios de Maio (Comentado)
100/101/ Passeio na Cidade
102/ Natal na Rua da Miséria (Comentado)
104/105/ Uma Temporada na Roça
106/ O Fantasma que mora em meu Sofá
108/ Filhos de Minas






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Além da Porta
(Vídeo de Dorival Campanelle)


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